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As doenças na obra de Jane Austen perpassam todos seus seis livros completos e neste post sobre o assunto acrescentarei também uma nota especial sobre Sanditon, o romance que estava escrevendo quando já estava muito doente e que ficou inacabado.

Começo com Razão e sentimento ou Razão e sensibilidade, lembrando que a sra. Dashwood, viúva aos quarenta anos, segundo seu enteado, possivelmente não viveria mais quinze anos, o que nos dá uma ideia da expectativa de vida da época.

Mas quem fica doente é sua filha Marianne que resolve passear pela propriedade de Cleveland, onde estava hospedada, passeios estes dos quais temos uma descrição minuciosa (abaixo) .

“Dois agradáveis passeios vespertinos no terceiro e no quarto dia de sua estada, não apenas pelo caminho de areia batida, entre os arbustos, mas por todas a extensão dos relvados, e especialmente em suas partes afastadas, que eram algo mais silvestre que o resto, com árvores antigas e capim alto e ainda úmido, tinham – aumentados pela imprudência maior de conservar os sapatos e as meias molhados – trazido a Marianne um resfriado tão violento que, apesar de seu descaso ou de negá-lo por um dia ou dois, impôs-se afinal, por força de seus crescentes sofrimentos, à preocupação de todos e à evidência de si mesma.” (trad. Ivo Barroso)

A esses sintomas seguiram, febre, dores musculares, tosse, garganta irritada e foram piorando com o passar dos dias e chegando mesmo a delirar. Foi tratada por um farmacêutico que vários remédios. Todos os sintomas descritos no livro nos levam a crer que Marianne teve pneumonia.

Em Orgulho e preconceito, além dos pobres nervos da senhora Bennet, algo que se curava instantaneamente com uma boa notícia, temos dois casos. O primeiro foi o resfriado de Jane Bennet, uma doença induzida pela sanha casamenteira da mãe, que a enviou para casa dos Bingley quando sabia que choveria . Quando o sr. Bennet disse para ela que se a filha ficasse muito doente e morresse ela poderia se consolar sabendo que foi por uma boa causa, conquistar o sr. Bingley, ao que ela retrucou:

“Ora, não tenho medo que ela morra. As pessoas não morrem de resfriadinhos sem importância.” (trad. Celina Portocarrero)

Resfriadinhos, gripezinhas, a gente sabe como é, não é mesmo?

Sobre a segunda doença, a da srta. De Bourgh, temos apenas a descrição de sua aparência adoentada: magra, pequena, pálida, falava pouco e em voz baixa com sua governanta que cuidava para que comesse mais, como se fosse uma criança. Sabemos que não foi apresentada à Corte, como seria de praxe para alguém de sua posição social. Seria alguma doença degenerativa ou mental que tornaria vergonhoso apresentá-la ao público?

Doenças na obra de Jane Austen
Susannah Harker como Jane Bennet — Orgulho e preconceito, 1995

Fanny Price a pequena heroína de Mansfield Park, apesar de aguentar tudo estoicamente tem uma saúde frágil, nada de específico, mas sente-se mal ao colher rosas num dia mais quente, por exemplo. Sua fraqueza possivelmente decorreria de sua infância pobre e talvez fosse anemia. Seu primo Tom, o filho mais velho de Sir Thomas Bertram, vivia viajando e na farra com os amigos até que um dia, depois de uma queda e muitas bebedeiras, ficou muito doente. Quando Fanny foi cuidar o primo em Mansfield, ficamos sabendo da natureza da doença:

“Não havia casos de tuberculose na família e Fanny se sentiu mais inclinada a ter esperanças do que a temer pelo primo,[…]” (trad. Laura Alves e Aurélio Rebello)

Ocorreram também duas mortes em Mansfield, mais precisamente no presbitério, o primeiro foi a marido da tia Norris, sem maiores explicações e que foi substituído pelo reverendo Grant, que segundo Tom.

“ele tinha o pescoço curto, era um tipo apoplético, vivia se empanturrando e não tardaria ir desta para melhor” (trad. Hildegard Feist)

O que de fato veio a acontecer.

Tom Bertram. Mansfield Park 1999
James Purefoy como Tom Bertram — Mansfield Park ,1999

No livro Emma temos o pai da heroína, o sr. Woodhouse, um adorável hipocondríaco, que teme quase tudo de comidas a viagens para o litoral. Bolos de casamento então, são um perigo!  O pai de Emma é descrito como uma pessoa enfermiça ou um valetudinário, que se significa alguém frágil e sujeito à enfermidades.

“O problema de sua atual diferença de idades [entre Emma e o pai] (e o sr. Woodhouse não se havia casado cedo) era largamente acrescido pela sua formação e hábitos; pois tendo sido enfermiça durante toda a vida, com pouco atividade do cérebro e do corpo, era muito mais velho na aparência que na idade real; […]” (trad. Ivo Barroso)

Temos também a senhorita Jane Fairfax, que come pouquíssimo mas não fica claro quais seriam as causas, talvez anorexia de fundo nervoso, pois convenhamos que aguentar um namorado como Frank Churchill é preciso nervos de aço.

O que aconteceu de mais grave em Persuasão não foi uma doença mas sim o acidente com a imprudente Louisa Musgrove, que ao pular da parte de cima do Cobb, o quebra-mar da cidade de Lyme Regis, numa brincadeira para que o Capitão Wentworth a segurasse.

“Ele ergueu os braços, mas ela estava meio segundo adiantada e caiu no chão do Baixo Cobb. Quando foi erguida estava morta! Não havia ferimento, sangue nem uma contusão visível; mas seus olhos estavam fechados, ela não respirava e seu rosto parecia a morte.” (trad. Carla Bitelli)

Foi uma contusão grave segundo o médico, mas ela se recuperou.

Não creio que podemos chamar as crises de Mari Musgrove de doença ou mesmo hipocondria pois bastava que lhe fizessem as vontades que ficava bem disposta.

Em A abadia de Northanger Jane Austen elogia a família Morland, com seus dez filhos perfeitos e para surpresa geral, o fato da sra. Morland não ter morrido no parto como era de se esperar. Sim, a morte no parto era algo quase natural naquela época, mas Austen não podia deixar de fazer uma piada da situação.

“A senhora Morland era uma mulher de grande juízo, de bom caráter e, o que é mais notável, de boa constituição física. Ela tivera três filhos antes do nascimento de Catherine; e, em lugar de morrer pondo esta no mundo, como se devia esperar dela, viveu ainda, viveu para ter mais seis filhos, para vê-los crescer em redor de si, e para gozar ela mesma de uma próspera saúde.” (trad. Lêdo Ivo)

O parto, é claro, não é uma doença mas o alto índice de mortes decorrente dele, tanto dos filhos como das mães, poderiam ser considerados uma doença? Fica aqui a pergunta para alguém da área da saúde que por ventura leia este post.

Não sabemos qual foi a doença que levou a morte a sra. Tilney. Eleanor Tilney fala de maneira vaga sobre a morte de sua mãe para a curiosa Catherine, que já estava a imaginar mil coisas, neste diálogo:

“– E a senhorita  esteve com ela até o fim?
– Não –disse a srta. Tilney, suspirando. – Eu infelizmente estava viajando. A doença dela foi súbita e curta. E, antes que eu voltasse, estava tudo terminado.”(trad. Júlia Romeu)

O motivo pelo qual o sr. e sra. Allen resolvem ir para Bath, é para que o marido possa usufruir das águas da cidade, tidas como benéficas para a gota, doença inflamatória nas articulações devido o ácido úrico elevado.

A saudável família Morland
A saudável família Morland – A abadia de Northanger, 2007

Sanditon, que Jane Austen escreveu apenas oito capítulos um pouco antes de falecer, mesmo inacabado apresenta os personagens principais e o mote do que seria o romance, um balneário para enfermos, como explica o sr. Parker:

“Um lugar como Sanditon, senhor, posso dizer que foi sonhado, foi exigido. […] Nunca houve um lugar mais claramente projetado pela natureza para ser o balneário de enfermos, o verdadeiro lugar de que milhares de pessoas estavam à procura!” (trad. Ivo Barroso)

Com a costumeira graça Jane Austen nos conta que, entre os primeiros a chegar em Sanditon estão as duas irmãs e um irmão mais novo do sr. Parker, todos hipocondríacos de carteirinha, como dizemos!

Sempre sonhamos com uma panaceia para nossos males. Não existe, querido Tom Parker!

Nota

Sanditon foi traduzido pela primeira vez no Brasil, com o título Novelas inacabadas, Os Watsons e Sanditon, com a tradução de Ivo Barroso e introduções minhas pela editora Nova Fronteira.

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3 comentários

  1. Muito interessante!
    Não sou médica nem especialista no assunto, mas minha mãe trabalhou como enfermeira quando eu era criança então sempre contei com os conselhos dela sobre esses assuntos de saúde.

    Me baseando nisso, as mortes durante o parto podem ter vários motivos, um deles seria que antigamente quando a mulher tinha muitos filhos o corpo acabava ficando mais fraco e nem sempre era possível tratar o problema na forma correta e então a mulher engravidava estando debilitada.

    As doenças mais comuns eram anemia grave e problema cardíaco. Problemas de pressão também ocorrem muito em gestantes.

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