Há várias maneiras de dizermos a mesma coisa e a tradução é uma das provas desse fato, mesmo quando tratamos de números. No exemplo abaixo a tradução portuguesa optou por uma interpretação literal do inglês e a brasileira preferiu a fórmula de , ambas percentagens, ambas dizendo a mesma coisa.
In nine cases out of ten, a woman had better show more affection than she feels.
Nove em cada dez casos, uma mulher deve demonstrar mais afeição do que a que realmente sente. PT
Em noventa por cento dos casos, uma mulher deve demonstrar mais afeição do que a que ela realmente sente. BR
Na frase acima Charlotte diz para Elizabeth como uma mulher deve demonstrar seus sentimentos quando se interessa por um homem. Elas falam sobre o comportamento mais retraído de Jane Bennet em relação a Mr. Bingley. Elizabeth rebate dizendo que os encontros do casal, sempre cercados por outras pessoas, não foram o suficiente para tais demonstrações de afeto, resumindo com a frase:
This is not quite enough to make her understand his character.
Não é o suficiente para ela conhecer bem a sua personalidade. PT
Não é o bastante para formar juízo acerca de seu caráter. BR
A tradução brasileira manteve a palavra “caráter” mas a portuguesa preferiu “personalidade” e neste ponto surgiram minhas dúvidas. É possível usar tanto “personalidade” como “caráter” para traduzir character de um modo geral? E neste caso específico o uso de “personalidade” condiz com o significado do original?
No meu entendimento, sem consultas ao dicionário, personalidade é a maneira original de ser de uma pessoa e o caráter é algo forjado com os ensinamentos da vida. Gostaria muito de saber a opinião de vocês neste caso.
A tradução de ditos populares muitas vezes é uma dor de cabeça para os tradutores mas neste caso qualquer uma delas me parece que transmitiu bem o que disse Elizabeth, com apenas uma ressalva: qual o motivo de usar as palavras “caldo” e “sopa” quando a porridge quer dizer mingau ou papa?
“Keep your breath to cool your porridge”
“Guarda o fôlego para arrefecer a sopa” PT
“Guarde o seu sopro para esfriar o seu caldo” BR
Pretendia falar sobre uma das minhas frases favoritas de Mr. Darcy, mas prefiro remetê-los a um post que escrevi sobre o assunto: “Eu, Mr. Darcy e o carnaval“. Transcrevo a frase apenas para dizer que prefiro a concisão da tradução portuguesa.
Every savage can dance.
Qualquer selvagem sabe dançar. PT
Todos os selvagens sabem dançar. BR
Quando sir William Lucas perguntou para Mr. Darcy se possuía uma casa em Londres, este, que já estava enfadado com as conversas, fez apenas um gesto para dizer que sim. O verbo em inglês para esse gesto é bow e significa literalmente inclinar a cabeça, tanto em concordância como também para cumprimentar alguém.
Mr. Darcy bowed.
O senhor Darcy assentiu. PT
Mr. Darcy se inclinou. BR
A tradução brasileira como apenas “se inclinou”, talvez por não ver quase ninguém fazer esse gesto atualmente, que reputo como muito elegante, me parece que deixa a desejar no sentido da resposta de Mr. Darcy.
O comentário da senhorita Bingley sobre o estado de Elizabeth Bennet quando chegou em Netherfield depois de atravessar os campos enlameados pela chuva daria um tratado de maledicência feminina, o que deixarei para ocasião mais oportuna. Me restringirei aqui a medida de lama das traduções. O original deixa claro: são seis polegadas de lama em sua saia de baixo (peticoat). Já a tradução portuguesa usou um palmo de lama que se compararmos às polegadas fica perfeitamente bem. Lúcio Cardoso preferiu não entrar no mérito do tamanho da sujeira e generalizou!
Yes, and her petticoat; I hope you saw her petticoat, six inches deep in mud, I am absolutely certain;
Sim, e o saiote, não reparaste? O seu saiote tinha, no mínimo, um palmo de lama. PT
Sim, e a saia dela? Espero que você tenha visto. A barra estava toda suja de lama. BR
E por últlimo, algo que sempre tenho dificuldade de detectar que são nomes de comidas. Sem a leitura comparada eu jamais questionaria qualquer tradução, pois na maioria das vezes não procuro o significado exato do prato descrito. Tanto que ontem quando conversava com uma tia nos divertimos dando nomes brasileiros para mince pie, baseada na tradução literal “torta de guisado”. O nome que mais nos agradou foi “escondidinho de guisado”.
A senhora Bennet para elogiar a fina educação das filhas diz qualquer tolice e quando Elizabeth para disfarçar as grosserias que mãe está dizendo em Netherfield, na presença de Darcy e dos Bingleys, pergunta se Charlotte Lucas havia jantado em Longbourn, ela dispara:
“No, she would go home. I fancy she was wanted about the mince pies. For my part, Mr. Bingley, I always keep servants that can do their own work; my daughters are brought up differently.
Não, foi para casa. Julgo que precisavam dela para fazer os pastéis folhados. Quanto a mim, senhor Bingley, mantenho sempre criados que saibam fazer seu trabalho. PT
Não, preferiu ir embora. Creio que estavam precisando dela por causa dos croquetes. Quanto a mim, Mr. Bingley, sempre tomo criados que sabem fazer seu serviço. BR
De pastéis folhados para croquetes, pelo menos pelos os que conheço, a diferença é grande! Fui então procurar e cheguei às descrições da Wikipedia: uma espécie de tortinhas recheada com carne moída frutas secas e especiarias, tradicionalmente servida na época de Natal. Encontrei também uma receita no site da BBC.
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LEITURA DE CÁTIA
Leitura Comparada Orgulho e Preconceito – Portugal (6-10)
ILUSTRAÇÕES
Aquarelas de C. E. Brock da minha coleção “The Series of English Idylls”
“Well, Jane, who is it from? What is it about?” Capítulo 7
“You must allow me to present this young lady to you as a very desirable partner.” Capítulo 6
They [Miss Bingley e Mrs. Hurst] solaced their wretchedness by duets after supper. Capítulo 8
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não há nada na culinária portuguesa que se aproxime das mince pies, pelo menos que eu conheça. Embora os croquetes ou pastéis folhados também sejam feitos de “massas” e carne, o tipo de massa não é igual, pelo menos a julgar pela imagem da wikipédia.
O que devia acontecer neste caso era ter uma nota de rodapé a explicar o que são as mince pies, em algumas traduções fazem isso. Mas não sei se as que existem por cá de O&P têm essa informação, isso depende sempre do tradutor.
quanto ao caráter Vs personalidade, eu sei que em inglês se usa o termo personality, mas julgo que o termo seja moderno. tanto em jane austen como noutros autores do século XIX, eles sempre usam o character, por isso a tradução brasileira estará mais perto do original.
Vera,
eu também não conheço equivalentes de mince pies na culinária brasileira, mas como bem sabes o Brasil é imenso e eu não sou uma expert em culinária!
Temos o que chamamos de croquete de carne – podem ser feitos de camarão também (nunca provei essa modalidade) veja nesta foto.
Pastéis folhados temos com vários recheios: de carne, frango, queijo, presunto, palmito e muitos outros. Um foto para teres uma idéia do pastel de massa folhada.
Pelo o que dizes dos textos mais antigos parece que davam mais importância para o comportamento moral e não ao mais espontâneo. Ou tudo não será só impressão minha?
começando pelo fim 🙂 não sei responder a essa pergunta, aquilo que sei vem exclusivamente de ver séries de época. É possivel que a palavra tenha sido substituida e na altura de Jane Austen e outros se usasse o tal charater. Nas séries também dizem muito Aye,Nay que são os actuais Yes e No, por exemplo. Não tenho é a certeza se estas palavras e outras ainda são utilizadas em zonas mais rurais, tenho uma ideia de já ter visto isso em séries ou filmes passados no campo, mas não posso confirmar porque não me recordo de titulos. Vejo pouca ficção inglesa passada nos dias actuais e a que vejo é quase sempre passada em Londres.
Nós também temos os croquetes e os pastéis. Se bem que por cá os croquetes são sempre de carne nunca vi de outra coisa, já os pastéis folhados varia mais, mas são quase sempre de carne. E essas imagens abriam-me o apetite! 🙂
Vera,
sim, sempre tem a possibilidade do significado ter se modificado. Quantos os Aye e Nay são para distinguir as falas mais popularescas.
Eu não gosto muito de croquetes, prefiro os pastéis folheados com frango e queijo!
https://www.google.pt/search?q=empada&bav=on.2,or.r_qf.&bvm=bv.49784469,d.ZWU,pv.xjs.s.en_US.MpiVkF51mpA.O&biw=1366&bih=597&um=1&ie=UTF-8&hl=en&tbm=isch&source=og&sa=N&tab=wi&ei=SPPxUcmoN8eEhQf5lYCAAg
A mince pie lembra um pouco as empadas.
Raquel, tudo bão? Sobre caráter vs personalidade.
Esse questionamento em inglês fica bem mais divertido e claro.
Virginia Woolf disse certa vez essa célebre frase em um ensaio: “On or about December 1910, human character changed” (“Em ou por volta de dezembro de 1910, o …… – e aí vem a ambigüidade e amplitude da palavra character, que simboliza tanto personagem quanto caráter – humano mudou”). As relações entre “masters and servants, husbands and wives, parents and children” se alteraram “and when human relations change there is at the same time a change in religion, conduct, politics and literature.”
Demais né? Se o ser humano muda, o personagem de livro muda também. Todos somos personagens (characters), com nossas personalidades. Não dá pra separar personalidade de cárater. Faz parte da sua personalidade ser honesta, mas não faz parte do seu caráter??!
Talvez sejam nomes diferentes para a mesma coisa, como é tradição na língua portuguesa. Aliás, uma coisa que só a Jane Austen no original deve responder: no Brasil nós separamos amor de paixão, como se o primeiro fosse bom e eterno e o segundo vulgar e passageiro. Mas em inglês você nunca vê as pessoas discutindo isso. Alguém disse pra Marianne Dashwood que o Willoughby era uma paixão, e assim que esse sentimento é catalogado, supõe-se que é ruim e que deve ser esquecido?
Será que uma Jane Austen caberia, de nascença, numa língua como a nossa? A língua modela nosso character também…
bjones!
Enzo,
verdade, tem esse detalhe de character como personagem em inglês. Algo como somos todos personagens de nós mesmos.
Mesmo sendo similares e próximos não consigo ver/perceber,sentir honestidade como parte da nossa personalidade e sim como parte de nosso caráter.
Continuo com o sentimento que caráter é forja! E sentimento? Dúvidas, talvez?
Uma Jane Austen de nascença por aqui… não creio. Você viu o filme Caráter de 1997?
Não vi esse filme, mas lembro dele na época! Tem algo de especial?
Enzo,
é interessante. É sobre a formação ou se quiser (de)formação do caráter de um pai e o um filho.
Raquel, concordo com você quanto aos significados de personalidade e caráter. Acho que personalidade é algo mais intrínseco ao ser humano e vejo caráter como algo mais “moldado” pelas vivências e valores.
Quanto a frase “Every savage can dance” prefiro a tradução portuguesa. O “qualquer” reforçou o tom de desprezo e desdém. Também gostei mais da tradução portuguesa em relação ao “palmo de lama”.
Analisando agora, percebo que nesses trechos que você destacou gostei em sua maioria das traduções de Nuno Castro. Aliás, a leitura comparada já é a minha parte favorita da programação do Bicentenário de “Pride and Prejudice” no seu “Jane”.
Júnior,
pois é, então não estou só na minha percepção de personalidade e caráter.
Que interessante seu gosto pela tradução portuguesa! Fico muito contente em saber que você está apreciando nossa leitura.
Também estou adorando esse trabalho de Tradução Comparada. Vc está certa: personalidade é mais do inconsciente; caráter é trabalhado desde cedo, mas resulta de valores passados a nós… é algo de fora. Sou brasileira, gaúcha, e parece-me que a tradução portuguesa nos dá um sabor de mais antigo… por isso me sabe melhor. Abrç.
Ana,
obrigada! Já leu os posts da Cátia no Jane Austen Portugal?
E sim, às vezes a tradução portuguesa nos dá esse sabor mais antigo.