O título do post é o mesmo da resenha de As sombras de Longbourn feita por Enzo Potel², leitor assíduo e também colaborador do Jane Austen em Português.
Enzo se apaixonou pelo livro de Jo Baker e acreditem vocês, escreveu a resenha em uma noite. Boa leitura!
Quando eu soube que haviam feito uma obra, uma releitura de Orgulho e Preconceito só que através da visão dos empregados da casa dos Bennet, lembro que imediatamente pensei em Loving (1945)¹, o maravilhoso romance do inglês Henry Green onde cotidiano dos empregados na mansão e o conhecimento que eles têm dela faz com que a casa seja mais deles do que de seus patrões.
Logo em seguida fui correndo para sites do exterior ver o que os grandes jornais dos Estados Unidos e da Inglaterra estavam dizendo e era tanta coisa boa (somente coisa muito boa) que fui obrigado a jogar meus preconceitos no lixo (livro de autor vivo?) e também notar que esse já era o quinto livro da autora – teve todo um caminho para chegar até ali, toda uma escola na prática. Ainda mais uma inglesa. A Inglaterra é um país onde o escritor nasce com praticamente quinhentos anos de literatura nas costas: é preciso muita segurança para um projeto tão audacioso.
Um final de semana acabou me levando até o caixa de uma livraria de shopping e saí de lá com As Sombras de Longbourn, da Jo Baker (Companhia das Letras, 2014). Aquela fotinha de mulher fatal na orelha da contracapa me causou uma estranheza… como pode alguém com um olhar tão insípido e levemente arrogante se embrenhar na realidade dos empregados de uma família que, de certa forma, eu já considerava pobre?
Ainda bem que uma foto está longe de retratar uma pessoa. Quem é Jo Baker? É alguém genial. Pelo menos é uma leitora genial. Vê coisas básicas em Orgulho e Preconceito que muitos de nós não ousaríamos cogitar. E Baker não tem qualquer pretensão de imitar a escrita de Austen: escolhe sempre o caminho oposto. Delicia-se com descrições, faz pontes entre a escravidão dos negros na América e a quase escravidão dos pobres na Inglaterra, descortina (com muita verossimilhança) padrões morais nada sublimes nos personagens mais amáveis de Orgulho e Preconceito.
Há quem diga que o livro comece vitimista em excesso, já que imediatamente somos jogados para o cruel cotidiano da protagonista, a empregada Sarah – que tinha tanto trabalho a fazer e tão pouco direito a reivindicar. Mas isso não me incomodou. A surpresa foi começar a me sentir incomodado pelo fato da Jane Austen ter desprezado tanta pulsação de vida que havia naquelas pessoas dentro da casa; assim como grande parte da literatura brasileira que, mesmo nos mais renomados autores, trata o negro como invisível, sem nome, sem história. A coisificação do negro na literatura de todas as Américas encontra um espelho na fala da Elizabeth Bennet para a Sarah de As Sombras de Longbourn: “Entenda, eu quero alguma coisa aqui de casa comigo”. A coisa ali, no caso, é a empregada. Daí uma amiga me disse: “mas você não pode esperar que alguém, no século XIX, desse importância para os empregados”. Não mesmo? Poucas décadas depois Emily Brontë estava publicando uma obra colossal que dá vários poderes aos empregados da casa, e é a senhora Dean quem narra praticamente todo O Morro dos Ventos Uivantes.
As Sombras de Longbourn cerca de qualidades o leitor e isso é uma resposta à incrível capacidade da Jo Baker em se colocar no lugar do outro. O livro é bom porque reflete pesquisa histórica para se aproximar de detalhes do cotidiano do empregado naquela época. É bom porque a história de amor entre os protagonistas não rouba a cena – inclusive o sexo é reduzido a uma coisa, a só mais um elemento da vida: não é mais importante que os outros dentro da trama, mas também não precisa ser ignorado – e até a linguagem que circula entre os personagens ao falarem sobre sexo (lembrei daquele diálogo infame entre Mr. Wickham e James Smith) me soou gritante por parecer contemporânea demais, mas se você parar pra pensar, só salta aos olhos porque nós estamos lendo o livro com uma ideia de mundo pelos olhos da Austen. E homem tratando mulher de forma vulgar é uma coisa que independe de época.
A história dos empregados corre deliciosamente paralela a dos patrões (eu fiquei indo e voltando ao meu Orgulho pra ver se a Baker tinha errado em uma alguma coisa), e ao mesmo tempo é tão independente. Quando a Elizabeth Bennet deixou o lar para viajar até Londres e Kent, eu jurava que a casa ia ficar um tédio; que nada! A Jo Baker foi de uma sagacidade gigantesca: já que os empregados beiram a invisibilidade em Orgulho, colocou a Sarah ao lado do cocheiro e a narrativa de As Sombras de Longbourn foi junto com a Lizzie para as outras cidades, para onde a trama de Orgulho e Preconceito alcançava momentos monumentais.
Mas meus momentos preferidos de As Sombras são o capítulo 4 e o capítulo 7 da segunda parte do livro: a conversa do Mr. Collins com Sarah / Sarah observando o baile de Netherfield do lado de fora, no escuro do jardim. É incrível como o Mr. Collins da Jo Baker é o mesmo da Jane Austen… parece que a Jo simplesmente virou o personagem com a mão e o fez falar com a empregada. E, quanto à cena de Sarah no escuro do jardim – indo para ver um sonho e caindo na realidade – sou obrigado a transcrever esse pedacinho:
“E era isso, no final das contas, que ela havia esperado, porque uma casa não pode mesmo ser feita de açúcar, e tudo nela era de alta qualidade e lindo, com certeza. Mas as pessoas! Ela simplesmente não podia conceber que as pessoas fossem tão obtusas. Certo, havia os oficiais, e os Bingley eram jovens e ricos, o que sem dúvida era emocionante. Afora isso, porém, eram sempre os Long, os Lucas, os Golding, os mesmos velhos vizinhos que frequentavam Longbourn ano após ano, e por cujos salões os Bennet passavam também, e haviam feito isso por toda a eternidade, tinham jogado os mesmos jogos de cartas, comido as mesmas ceias de sempre e dançado as mesmas danças antigas e usado os mesmos vestidos, em nada diferente dos outros. E todos os vestidos novos – com exceção dos da srta. Bingley e de suas irmãs – eram feitos de tecidos que Sarah vira desbotando na loja de tecidos durante meses. E todos eles com as mesmas manchas e rugas de velhice, o mesmo mau hálito, as mesmas marcas de bexigas e a mesma coxeadura de gota. Todos defendendo as mesmas opiniões de sempre, mantendo as mesmas conversas, sobre as caçadas, as estradas e o tempo.”
Acredito que a tradução do Donaldson M. Garschagen também tenha seus méritos, o vocabulário correndo amistoso e delicado para vez ou outra nos surpreender com nossa própria língua: “A criada dos Collins era uma mocinha tímida, acoelhada”, “dobrar e emalar vestidos com uma boa antecedência”, “O azul da noite lixiviava-se através dela”, “Tinha o rosto vermelho e escrofuloso”.
Eu continuo amando Orgulho e Preconceito? Claro que sim. Mas As Sombras de Longbourn parece que amadureceu meu amor. E eu preciso dizer para qualquer pessoa que ama Orgulho e Preconceito: você precisa experimentar essa visão da história. De certa maneira você vai entrar em contato de novo com a fonte, e isso é um presente raro.
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Notas
¹ Loving já foi traduzido em Portugal pela editora Relógio D´água com o título de Amores (2010).
² Blog do Enzo: É difícil encontrar um blog bom
Imagens
Capa da tradução do livro pela Cia das Letras
Ilustração de Leigh Guldig para o artigo “Pride, Prejudice and Drudgery” no The New York Times
Detalhe da tela The Chocolate Girls de Jean Etienne Liotard | Google Art Project
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Bela resenha!!! Fiquei com mais vontade ainda de ler o livro.
Definitivamente tenho que ler. O livro não estava no meu orçamento! E agora? Rsrsrsrsrs
Uau!
Se me restava alguma dúvida quanto a minha necessidade de ler esse livro, ela acabou de ir para o espaço!
Uma resenha sensível e certeira, não nos deixa tempo para dúvida alguma. Eu, como amante de Jane Austen e “Orgulho e Preconceito”, PRECISO conhecer essa preciosidade de Baker.
Beijos,
Amanda
É raro eu ler resenhas porque sempre me tiram a vontade de ler o livro, pois contam coisas importantes da história. Pela primeira vez, uma resenha me deu vontade de ler o livro já! O texto está perfeito e o livro deve ser incrível.
Grande beijo.
Ótima resenha! Aumentou minha vontade de ler esse livro.
Esse é o 2º texto do Enzo Potel que eu leio. O outro foi o excelente “O irmão Brontë”, sobre a Emily e o “Wuthering Heights”.
Pena que não vou poder comprar o livro por agora… Curioso: “As sombras de Longbourn” está custando R$ 50,00 e a “Juvenilia”, de Jane Austen e Charlotte Brontë (comprei ontem!), está por R$ 23,00. Quem entende as editoras?
Beijos, Raquel, e até mais!
Te encontrei de novo, Enzo 🙂
Adorei a paixão com que escreveu sobre As Sombras de Longbourn, não deixo de concordar com suas pontuações. Guardo também essa admiração pela Jo (ainda mais qnd li ela falar sobre o livro nessa reportagem: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/04/1440930-livro-mostra-lado-downton-abbey-de-orgulho-e-preconceito.shtml), ela me ganhou desde as primeiras minúcias e seu estilo em muito me impressionou. Estamos em final de abril e arrisco dizer que foi o livro do ano para mim – tá difícil alguém passar na frente, acho que vai demorar. Foi lendo que percebi que não me sentia assim fazia um tempinho. Quando vc diz “Eu continuo amando Orgulho e Preconceito? Claro que sim. Mas As Sombras de Longbourn parece que amadureceu meu amor”, só definiu meus feels, ainda tão vivos e já saudosos (por o livro ter terminado). Super curti sua resenha.
Espero que o filme reserve muito da “aura” da Jo e não apenas corra pelo espaço de OeP. Torço para ser mais epic win, mas aí, novamente, fica difícil bater o livro 😉
Kléris, somos praticamente resenhistassiameses de Longbourn, né? Sentimos o livro da mesma forma. Eu to com medo do filme, sabia? O diretor e o roteirista vão ter que rebolar muito pra acrescentar um algo a mais na visão da Jo. Nhá!!
Fiquei mais curiosa ainda pra ler o livro!!! Ótima resenha.
Aposto que cê vai dar uma conferida nos comments. Então aproveito pra dizer que amo teu olhar pra vida e pros livors, mah friend. Muito boa resenha.
Fico feliz que a resenha conseguiu cativar vocês! Inclusive Eduardo Silveira dando o ar de sua graça (demais que sua mãe tá lendo “Foi Apenas um Sonho”, Edu, mesmo que eu consiga imaginá-la largando o livro com revolta por causa do final). ha. ha. hahahah
Passei os olhos por este livro enquanto procurava por Emma na internet e confesso e não dei a mínima, mas como uma apaixonada por Austen e principalmente por Orgulho e Preconceito, vou abandonar meus receios e preconceitos e vou procurar o livro. Obrigada pela resenha!
Uma resenha maravilhosa! Parabéns. 🙂
Resenha maravilhosa!
As imagens são divinas, gostaria muito de imprimir numa boa qualidade e enquadrar!!
Alguém conhece o artista da capa da edição inglesa? Link abaixo:
http://www.amazon.co.uk/dp/0552779512
Jéssica,
essa capa também é muito bonita.
Seu comentário anterior não foi publicado pois não é permitido distribuir arquivos gratuitos de obras que estão sendo comercializadas e não estão em domínio público.
Resenha perfeita! Muito bem escrita, nem muito nem pouco, De um livro maravilhoso de fato. Concordei com absolutamente tudo! Jo Baker não deixa nada a desejar à Jane Austen!