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Sense and Sensibility: nasce uma escritora
por Marcia Caetano
Na Linha

“Of all great writers Austen is the most difficult to catch in the act of greatness”.
“De todos os grandes escritores, Austen é a mais difícil de ser pega em ato de grandeza”.
Virginia Woolf

Duas características de Jane Austen me fascinam: a enorme capacidade de se manter continuamente próxima de seus leitores – geração após geração – e a incontestável habilidade com a mais exata descrição do seu tempo.  Eu não gostaria de fazer comparações, mas coloquem vocês a carapuça nas devidas cabeças e pensem que autoras posteriores à Austen, ainda que tenham se tornado “clássicas” e obrigatórias para nós, por mais que nos apaixonem pelas histórias incríveis, não nos dão aquela sensação de que “estou-lendo-um-livro-da-vovó-bom-à-beça”? Isto nunca acontece com Jane Austen.

Por exemplo, tenho a mais absoluta certeza que, quando ela introduz comentários perspicazes sobre um personagem que acabou de entrar no ambiente descrito, está falando para mim. Eu entendo tudo e ela me entende, somos amigas. Fico desconsolada ao fim de um romance de Jane Austen. Por isso, voltamos sempre a eles, gostamos de reler estes livros, de comentar sobre eles, de trocarmos opiniões. Eles não são exclusivamente literatura, eles são parte da própria vida, pelo menos para um grande público mundo afora. Mas qual seria o mistério dessa autora?

Em seu livro de ensaios Um teto todo seu, Virgínia Woolf fala sobre Jane Austen: “ali estava uma mulher, por volta de 1800, escrevendo sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem pregações.” (p. 76, trad.Vera Ribeiro) É fato conhecido a estreiteza da vida da autora, entretanto, ressalta Virginia Woolf, “talvez fosse da natureza de Jane Austen não querer o que não tinha”. (p.78) Ou é possível que o que a vida lhe negou ela tratou de viver por conta própria em seus livros?

A trajetória de um livro

Entre 1785 e 1786 (dos 9 aos 10 anos), Jane e sua irmã Cassandra frequentaram a escola da sra. La Tournelle.  Logo após retornar dessa escola, Jane começou a escrever histórias curtas (algumas de uma página), uma série de texto cômicos, outros inacabados, que ela dedicava aos membros da sua família.  Posteriormente, ela copiou essas histórias em três livros de manuscrito aos quais ela chamou simplesmente Volume PrimeiroSegundo, Terceiro.  A coletânea nunca foi publicada quando ela era viva e é hoje conhecida como Juvenilia.  Entre 1793 e 1794 (por volta dos 18 anos), ela começou a esboçar um romance epistolar sobre uma viúva fria e manipuladora. Hoje essa história é conhecida como Lady Susan.

Sense and Sensibility, publicado em 1811 na Inglaterra, foi lançado no Brasil pela editora José Olym­pio, em 1944, com tradução de Dinah Sil­veira de Quei­roz (sobre esta edição, ver post do Lendo Jane Austen aqui).  O livro foi esboçado primeiramente comoElinor and Marianne” em 1795, quando Jane tinha 19 (!) anos. De acordo com testemunhos da sua própria família, o livro tinha a forma de um romance epistolar. O manuscrito foi então abandonado e ela retornou a ele posteriormente (provavelmente após de se mudado para Chawton Cottage, no verão de 1809).

No inverno de 1795-6, há registros de uma possível ligação amorosa entre Jane Austen e Tom Lefroy, sobrinho do Reverendo George Lefroy de Ashe, mas é possível que a família de Lefroy viu nessa aproximação um perigo, já que ambos não tinham dinheiro e o mandaram de volta para Londres. Se ela de fato estava apaixonada por ele ou não é uma questão difícil de responder.  O fato é que, alguns meses depois, em 1796, Jane começou a escrever “First Impressions (primeiras impressões), primeira versão de Pride and Prejudice (Orgulho e preconceito).  O pai de Jane ficou tão entusiasmado com este romance que ele escreveu ao editor Cadell em Londres, oferecendo o manuscrito, que foi recusado.  Então, Jane deixou de lado “First Impressionse retornou a “Elinor and Marianne, transformando-o no livro que conhecemos como Sense and Sensibility ou Razão e sentimento ou ainda, Razão e sensibilidade, nas traduções brasileiras.

Em 1797, a sra. Austen viajou com suas filhas para passar algumas semanas em Bath, junto com seu irmão e sua cunhada.  Ela havia morado em Bath quando solteira e as jovens foram introduzidas ao ambiente social de Bath pela tia. Muito provavelmente ela tenha coletado material para escrever “Susan(publicado postumamente como Northanger Abbey) nesse período.

Em 1801 o pai de Jane decide se mudar para Bath e no ano seguinte, enquanto Jane e Cassandra estavam visitando seu irmão James em Steventon, Jane recebeu uma proposta de casamento de Harris Bigg-Wither que ela aceitou e depois voltou atrás e recusou no dia seguinte.  Detalhes sobre a história neste site da JASA (em inglês).

Em 1803, com a ajuda do irmão Henry, Jane vende o manuscrito do romance “Susan” para a firma Benjamin Crosby & Co, que chegou até a anunciar o lançamento mas nunca o fez. Posteriormente, Jane tentou reaver o manuscrito, mas não tinha o dinheiro disponível que a editora requeria.

Em 1805, o pai de Jane morreu subitamente, deixando sua esposa e filhas em uma apertada situação financeira.  Como solução, ficou acertado que elas passariam o verão com os filhos e suas famílias e ficariam em Bath apenas durante o inverno.

É por volta de 1810 que Jane conclui a revisão de “Elinor and Marianne”.  No capítulo dedicado à Sense and Sensibility do livro Jane Austen – The world of her novels, Deirdre Le Faye faz um mapeamento preciso sobre as mudanças posteriores adicionadas ao manuscrito. A barouche na qual a sra. Palmer circula não era conhecida na Inglaterra antes de 1800.  O serviço de correio de dois pennies de Londres, utilizado por Marianne para enviar cartas a Willoughby, passou a vigorar depois de 1801 e Walter Scott não se tornou um poeta popular a não ser depois de 1805.

La Faye afirma que provavelmente por volta de 1810, já morando em Chawton Cottage, com a ajuda de seu irmão Henry, Jane ofereceu o manuscrito de Sense & Sensibility a Thomas Egerton, que o aceitou sob a condição de que a autora arcasse com os custos de publicação.  Em uma de suas cartas de abril de 1811, Jane se refere ao trabalho de correção de provas do texto e o livro foi lançado em outubro de 1811. Jane estava temerosa que o livro não vendesse bem, pois chegou a separar um dinheiro da sua ínfima renda para arcar com os eventuais prejuízos. Entretanto, a precaução foi desnecessária, o livro não só vendeu muito bem, como foi acolhido positivamente pela crítica da época e rendeu um lucro à Jane. O futuro do livro nós conhecemos bem hoje, 200 anos depois.

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FONTES:
Jane Austen, the world of her novels, Deirdre Le Faye – Frances Lincoln.
A memoir of Jane Austen: and other family recollections, James Edward Austen-Leigh – Oxford World’s Classics
Um teto todo seu, Virgínia Woolf (trad. Vera Ribeiro), Nova Fronteira
♦ “Modern Fiction”, Virginia Woolf, em Theory of the Novel. p.739-744 (coletânea de críticas históricas editadas por Michael McKeon, Johns Hopkins University Press.
IMAGENS:
♦ Aquarela Jane Austen,  frontispício Sense and Sensibility, retratos de Thomas Langlois Lefroy e Harris Bigg-Wither, do acervo de livros do Jane Austen em Português
♦ Detalhe de imagem da BBC da minissérie Razão e Sensibilidade, 2008

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10 comentários

    1. Gi,

      e sempre tem detalhes que desconhecemos! E isto considerando que Jane levou uma vida relativamente pacata.

  1. Márcia,

    muito obrigada por aceitar o convite!

    “ali estava uma mulher, por volta de 1800, escrevendo sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem pregações.”

    Sem pregações.

    Este trecho deveria ser lido vezes por aspirantes a escritores.

  2. Que post maravilhosamente bem escrito! Parabéns, Márcia! E Raquel, obrigada pela iniciativa.

    1. Carolina,

      fico contente que tenha gostado da série “leitores convidados”. Todo mês até novembro terá um convidado, pelo menos, escrevendo sobre Razão e sentimento.

  3. Raquel, ficou LINDO!!!! Puxa, vocè é “prendada” com design, hein? Concordo totalmente com o que você falou da frase de Virginia Woolf. Olha, eu não te contei, mas eu tentei uma entrevista com a Le Faye, só que ela estava super ocupada preparando outro livro, eu realmente gostei muito do livro dela e do jeito não-linear que ela tem de narrar.

    Beijos e obrigada pela oportunidade!

    Marcia.

    1. Marcia,

      muito obrigada!
      Um entrevista com Deirdre Le Faye seria ótimo.

  4. Raquel
    Transmita meus cumprimentos p/ Márcia. Adorei o post … deu vontade de continuar lendo a trajetória até os últimos livros … Parabéns!

  5. Gostei muito do post. Muito bom mesmo!

    Raquel, essa captura de tela da série da BBC é uma das mais belas que já vi no blog. Ficou demais.

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