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Hoje, domingo não teremos a Gazeta de Meryton mas algo muito melhor! Teremos o prefácio completo de Orgulho e preconceito com a graciosa permissão da editora L&PM e do autor do texto, o poeta Ivo Barroso.

Muito obrigada a ambos!

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Jane Austen, a “boa tia de Steventon”

Ivo Barroso

Em 1817, falecia em Winchester, no condado de Hampshire, no sudeste da Inglaterra, uma frágil solteirona de 41 anos, de parcos dotes físicos, mas desenvolta dançarina nos saraus da província, que, com o correr dos tempos, se tornaria conhecida como uma das mais importantes escritoras da língua inglesa. Chamava-se Jane Austen e começou a escrever histórias apenas para a distração de seus inúmeros sobrinhos, chegando mais tarde a publicar alguns livros, o primeiro deles sob pseudônimo. O que se tornou mais famoso, precisamente este Orgulho e preconceito (Pride and Prejudice, em inglês), numa enquete organizada pela BBC de Londres, em 2003, sagrou-se como o segundo “Livro mais amado pelos leitores do Reino Unido”.

Com base em suas narrativas, têm sido feitas inúmeras adaptações cinematográficas, algumas bem recentes até, daí falar-se num revival de Jane Austen – mas a expressão é inadequada, pois a autora de Razão e sentimento (1811), Orgulho e preconceito (1813), Mansfield Park (1814) e Emma (1816) nunca esteve literariamente morta, embora tenha falecido para o mundo há quase dois séculos. Seus leitores – e não só os de língua inglesa – têm sido fiéis, constantes e crescentes em todos estes anos que viram a obra literária da “boa tia de Steventon” atingir fabulosas tiragens, comparáveis apenas com as da Bíblia e de Shakespeare.

Usando a narrativa como veículo para uma acerba crítica da sociedade em que vivia, defensora incontornável da moral mas sem arroubos moralistas, preferindo a ironia ao sermão, Jane Austen conseguiu criar personagens vivos e inesquecíveis com sua arte de pintar em subtons e nas entrelinhas o mundo provincial onde transcorreu sua pobre e curta existência. Somente através de uma observação vívida poderia essa “boa tia” transcender os parcos limites do serão familiar para projetar seus personagens na galeria dos grandes vultos criados pela tinta negra. E a despojada forma de seu estilo os preserva ainda hoje, saborosos e latentes, em meio aos milhares de poderosos vultos que nestes 190 anos vieram enriquecer a literatura mundial.

Mas, antes de mais nada, em que consiste esse famoso estilo? Jane Austen não está sozinha na galeria de mulheres escritoras da literatura inglesa de seu tempo: em 1847, Charlotte Brontë publica Jane Eyre, e sua irmã, Emily, O morro dos ventos uivantes; em 1860, George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans) lança seu “romance novo” (The Mill on the Floss). São todas obras-primas da literatura romântica, sendo que o livro de Eliot inova o gênero com suas preocupações morais e psicológicas. No entanto, nenhuma delas conseguiu ser tão apreciada quanto Jane Austen, talvez por lhes faltar esse ingrediente que é uma das pedras de toque da literatura inglesa: o humor. Jane é espirituosa, é sarcástica, é gozadora. Os aspectos cômicos da pequena aristocracia inglesa são por ela expostos ao ridículo por meio das fraquezas vocabulares e das gafes. Em seus livros abundam as futricas e os mal-entendidos. Neles quase não há descrições; estão praticamente ausentes de paisagens, mesmo porque a autora muito pouco viajou. Toda a ação se passa no interior das residências, é induzida através dos diálogos ou das cartas. Mas que maneira espantosa de reproduzir tais diálogos ou de escrever tais cartas! Por eles, mesmo em tradução, Jane Austen nos permite avaliar o grau de educação ou a ignorância do personagem e situá-lo na escala social. No romance Razão e sentimento, por exemplo, quase todas as falas da sra. Jennings são antológicas, meras tentativas frustradas de o personagem aparentar o que não é, deixando sempre escapulir, pela tangente, um termo, uma expressão menos adequada ou um cacoete vocabular, que denunciam sua real personalidade ou sua formação cultural. Outro recurso estilístico de que Jane Austen se valeu de maneira exemplar foi o da inclusão de cartas no decorrer da narrativa. Na época em que viveu, a correspondência desempenhava um papel de relevância na vida familiar, não só por ser o veículo transmissor das notícias, mas igualmente por determinar o caráter do signatário; nela, o missivista punha à mostra o seu grau de instrução, seu conhecimento da língua e das boas maneiras sociais e, principalmente, a nobreza de seus sentimentos, que as convenções preconizavam fossem contidos ou dissimulados. Em Jane Austen, o trecho em que transcreve uma carta vale por uma longa descrição de fatos ou por uma demorada análise do comportamento do subscritor. CONTINUE LENDO>>

Tendo vivido no ambiente limitado de uma pequena paróquia de que seu pai era o rector (uma espécie de pároco-professor), Jane escreve sobre o que vê e conhece: as tentativas de ascensão na escala social, o valor das pessoas determinado pela sua renda anual (“considera-se gentleman todo aquele que se mantém sem recorrer ao trabalho manual”), o grau de ignorância dos falsos nobres, a maldade das pessoas boas e, mais que tudo, a luta das mulheres para se casarem, única porta de saída para a modificação (ainda que precária) de seu status de animal doméstico. Mas o que ainda hoje mais nos surpreende nas deliciosas narrativas de Jane Austen – o atrativo estilístico que lhe tem proporcionado tamanha popularidade – é sem dúvida seu tom “moderno”, a agilidade, o suspense, e mesmo o “gancho”, que imprime à sua narrativa um sabor de telenovela, naturalmente de alto nível. Apesar das anquinhas e das anáguas que revestiam todo o corpo das mulheres, os calções amarrados da cintura aos calcanhares; as blusas de punhos cerrados; as luvas, as golas altas; os amplos chapéus, as boinas e bonés, que transformavam a mulher num pacote de gesso ou porcelana, encouraçando-a contra qualquer tentativa de carícia, para nem pensar em algo mais, a mulher, a personagem feminina de Jane, é uma explosão de vitalidade, e seus olhos – única possibilidade de comunicação – transmitem todos os sentimentos, todas as emoções, todo o grande frêmito de vida amorosa não realizada, que certamente foi o grande drama pessoal da novelista inglesa. Em sua contenção emotiva, determinada pelo puritanismo da época, as personagens femininas não deixam, no entanto, de ser criaturas vivas e vibráteis, e mesmo quando contrapostas aos seus modelos antitéticos, racionais, essa racionalidade sabe compreender e equacionar os anseios da paixão e os desvarios da mente. Seus personagens e diálogos parecem (pratos) feitos para o cinema: os textos dos romances são verdadeiros scripts. Não é de se admirar que tantos filmes já tenham transposto para as telas as suas histórias aparentemente ingênuas, dando vida a personagens que já eram, nos romances, a configuração de tipos inesquecíveis. Aqui, em Orgulho e preconceito, a lenta caracterização da figura de Fitzwilliam Darcy, evoluindo de uma pessoa antipática e pretensiosa para, num timing perfeito, se mostar magnânimo e providencial na reabilitação de Lydia (irmã mais nova de Elizabeth Bennet, a principal personagem feminina); a guinada transcendente que nos leva a reconsiderar sua atitude reservada e distante dos primeiros momentos, capaz de provocar em nós, como leitores, uma certa aversão por esse nobre afetado, ao sabermos finalmente que ele foi, desde o início, um enamorado precavido e respeitoso, compensando, no fim, a heroína Elizabeth por todo o sofrimento e as dúvidas que teve a seu respeito – todas essas fabulações e artimanhas de Jane Austen, esses enredos e quiproquós que animam os seus relatos, e que foram, depois dela, utilizados milhares de vezes para movimentar as novelas e os folhetins – servem para evidenciar seu talento de escritora, seu espírito de observação, sua penetração psicológica, ou, reafirmamos, ainda que possa parecer paradoxal, sua “modernidade”. Embora tenha sido publicado em 1813 como seu segundo livro, Orgulho e preconceito é, na verdade, a primeira tentativa de Jane para ver um manuscrito seu impresso. Com o título inicial de First Impressions (Primeiras impressões), a novela, composta entre outubro de 1796 e agosto de 1797, não chegou a realizar aquele sonho, tendo sido recusada pelo editor Thomas Cadell. Duramente retrabalhados, os originais, sob a nova denominação de Pride and Prejudice, foram finalmente vendidos ao editor Thomas Egerton, que os publicou em três volumes encadernados, dezesseis anos depois.

Mas, na verdade, esse primeiro livro já pode ser tido como a súmula do que seria a temática e a estilística pessoais de Jane Austen ao longo de sua criação literária: a apresentação minuciosa da vida corriqueira de uma cidadezinha interiorana, a organização das famílias na sociedade aristocrática da Inglaterra da virada do século XVIII para o século XIX, as irmãs casadoiras cuja única esperança de realização é conseguir um casamento “confortável”, ou seja, com um militar ou um pastor anglicano (cujos rendimentos anuais eram públicos), já que os nobres (“amores impossíveis”), com suas posses e moradias senhoriais, só se casavam com pretendentes do mesmo nível econômico. Com base nesse esquema simplista e simplório, Jane Austen, no entanto, povoa seu mundinho com pessoas sensíveis e ardorosas, belas e bem dotadas intelectualmente, embora compense esse quadro idealístico também com personagens caricatos e alguns histriões de caráter duvidoso. Embora os críticos mais exigentes considerem Persuasão (Persuasion), sua obra póstuma de 1917, o seu melhor romance, e por mais distante que o cenário austiano possa parecer em relação à vida atual, a leitura de Orgulho e preconceito tem conquistado a preferência dos leitores de todo o mundo, talvez porque represente o núcleo gerador de todo um universo de sonho e de beleza.

Há  críticos que estranham a inexistência, nos livros de Jane Austen, de quaisquer menções políticas relacionadas aos acontecimentos universais de sua época. Embora dois de seus irmãos pertencessem à Armada britânica durante as Guerras Napoleônicas, não há em toda a sua obra a mais leve referência a esses conflitos que perturbavam o mundo e atingiam inclusive (e de maneira significativa) a Inglaterra. Seu silêncio sobre a Revolução Francesa pode, em parte, ser explicado pelo drama que sofreu sua prima Eliza, casada com um nobre francês, o conde de Feuillide. Ela costumava passar temporadas em Steventon com os Austen; quinze anos mais velha que Jane, devia ser para esta um motivo permanente de encanto pela alta posição que conquistara com o casamento (embora ela também tivesse posses) e um modelo perfeito para a observação estudiosa de uma jovem escritora. Eliza gostava de representar, e sua permanência em 1787 com os Austen ficou assinalada por ter movimentado os dotes dramático-amadorísticos da família, ensejando frequentes encenações de esquetes de autoria das jovens no grande celeiro contíguo à propriedade rural. Durante sua estadia, a vida das irmãs Jane e Cassandra se animou com leituras em voz alta e narração de histórias, não só em proveito das crianças da casa, mas igualmente de parentes e vizinhos que vinham se deleitar com as brincadeiras e a música. Mas em 1794, ocorreu o grande choque, que tornaria Eliza viúva e provocaria em Jane um estado de pânico toda vez que se pronunciava diante dela o nome da França. O conde de Feuillide, tendo corrido em defesa de seu amigo, o marquês de Marlboeuf, perseguido pela Revolução, acabou sendo igualmente incriminado e morreu na guilhotina em Paris. Tal acontecimento dramático na vida de uma escritora de grande sensibilidade pode ter criado em Jane Austen uma aversão ou temor pelos acontecimentos mundiais.

Jane Austen nasceu em Steventon, no Hampshire (Inglaterra) a 16 de dezembro de 1775, penúltima dos oito filhos do reverendo George Austen (1731-1805) e de sua mulher Cassandra Leigh Austen (1739-1827), que exerciam funções presbiteriais da Igreja Anglicana nas pequenas paróquias de Steventon e Deane. Dois anos depois dela, nasceria o último dos filhos, Charles John, que, como o irmão Francis William, iria distinguir-se na Armada de Nelson, ambos chegando ao posto de almirante. Dois outros de seus irmãos, James e Henry, seguiram a carreira eclesiástica do pai; George, o segundo filho, que viveu permanentemente afastado do lar, internado em casas de repouso talvez devido a seus distúrbios mentais, faleceu com a avançada idade de 72 anos; Edward, adotado por um longínquo parente abastado, conseguiu alcançar a nobreza como proprietário de terras herdadas do tutor, e será em sua propriedade de Chawton que as irmãs Austen irão residir depois da morte do pai; Cassandra Elizabeth, a irmã única, morreu aos 73 anos, solteira, como Jane. Segundo o costume inglês, cabia-lhe o designativo de Miss Austen, por ser a mais velha, tratamento este que passaria a Jane caso Cassandra viesse a casar-se, e, como tal não aconteceu, Jane costumava brincar dizendo ser ela “a outra Miss Austen”. (Oportuno esclarecer que, segundo aquele costume, a escritora devia ser chamada por Miss Jane, omitindo-se o nome de família.) Vítima de moléstia que hoje se supõe fosse a doença de Addison, um distúrbio hormonal, então fatídico, que destruía totalmente as glândulas suprarrenais, a maioria das vezes por lesão tuberculosa, Jane veio a falecer aos 41 anos, na vizinha cidade de Manchester, para onde fora levada em tratamento. Todos os irmãos, exceto Edward, casaram-se duas vezes e tiveram muitos filhos. Jane e Cassandra adoravam os sobrinhos e é da primeira a frase “It’s better to be a loving aunt than a famous writer” (é melhor ser uma tia amorosa que uma escritora de fama). Cassandra foi sempre sua grande amiga e confidente; chegou a ficar noiva, aos 24 anos, do reverendo Thomas Fowle, que acabou morrendo de febre amarela, nas Índias Ocidentais, antes do casamento. Jane teve uma paixonite por Thomas Lefroy, seu primo longínquo, irlandês, que passava as férias em Hampshire; em seu regresso à Irlanda, ele se casou com outra, exerceu o alto cargo de Lord Chief Justice (uma espécie de promotor público) e, na velhice, muitos anos depois do falecimento de Jane, confessou “ter amado a grande Jane Austen… mas fora um amor de juventude” [a boy’s love]. Sabe-se também que em 1802, durante umas férias em Manydown, Harris Bigg-Wither a pediu em casamento; Jane, que tinha 27 anos, assumiu na hora o compromisso, mas fugiu com a irmã nessa mesma noite, voltando para a casa dos pais em Bath, sem que se soubessem as razões tanto da aceitação quanto da recusa, certamente esclarecidas em cartas à irmã, que foram por esta destruídas depois da morte da autora. No entanto, numa carta à sobrinha Fanny, filha mais velha de seu irmão Edward, Jane fala a respeito de amor e conveniência no casamento: “voltando ao assunto, quero lhe suplicar para não se comprometer demasiadamente, e nem pensar em aceitá-lo a menos que realmente goste dele. Tudo pode ser suportado, menos um casamento sem Afeto.” Isto pode explicar sua ruptura com Harris Bigg-Wither, com quem, aliás, manteve amizade mesmo depois do desentendimento.

A família Austen era abastada; o pai, além dos estipêndios que usufruía devido às suas funções paroquiais, preparava alunos, às vezes na condição de internos, para os exames da Universidade de Oxford. Jane passou os primeiros 27 anos de sua vida em Steventon, ausentando-se em duas pequenas ocasiões: em 1782 foi com a irmã para o pensionato da sra. Cawley, em Oxford, onde já estudava sua prima Jane Cooper. No pensionato, Jane contraiu crupe (difteria), doença então conhecida na Inglaterra pelo nome de “ferida pútrida na garganta”. Se não fosse pela advertência aos pais de Jane e Cassandra, a autora teria morrido nessa ocasião. Posteriormente, em 1785/87, as irmãs Austen foram estudar no pensionato de madame Latournelle, em Reading. Mas a formação literária de Jane só se deu realmente quando, na volta de Reading, começa a estudar com o pai e os irmãos mais velhos. Ela escrevia abundantemente: cartas, peças de teatro, poesia, farsas, novelas. Em 1802, o pai se jubilou de suas atividades eclesiásticas e a família foi morar em Bath. Nessa época, Jane já havia composto as versões iniciais de três novelas que iria mais tarde reescrever e publicar. Em 1803, o sr. Seymor, empregado de seu irmão Henry, enviou seus manuscritos de Susan para os editores Crosby & Co., que os adquiriram por dez libras para publicação. No entanto, passados seis anos, a novela não havia saído; Jane, usando o pseudônimo de mrs. Ashton Dennis, consegue recuperar os originais e os transforma em A abadia de Northanger (Northanger Abbey), publicado postumamente.

Em 1805, o pai, George Austen, morre. Jane e Cassandra assumem o papel de tias, vivendo sempre rodeadas de sobrinhos. Seu relacionamento maior é com o irmão mais velho, o reverendo James Austen, cujo filho, James Edward, iria publicar em 1870 sua Memória de Jane Austen. Em 1811, sai sua primeira obra impressa, Razão e sentimento (Sense and Sensibility), assinada By a Lady (por uma Senhora). Durante toda a sua vida Jane manteve o anonimato. Nos últimos anos, já enferma, escreveu Persuasão e reviu Northanger Abbey. Deixou inacabado o último livro, Sanditon, ao morrer a 18 de julho de 1817. O irmão Henry foi quem revelou a identidade da autora e supervisionou a publicação destas duas últimas novelas completas, em 1818.

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IMAGENS: Todas já publicadas em posts anteriores.

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