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“Não existem pobres na Inglaterra de Austen”
Enzo Potel
poeta e escritor¹
É difícil encontrar um blog bom

Mr. Darcy e Elizabeth, ilustração Joan HassalHá uma frase de Santo Agostinho que diz: “Quando se ama, faz-se tudo sem custo, ou ama-se o que custa”. E é sempre com essa frase que eu começo a pensar em uma das coisas que mais gosto em Orgulho e Preconceito: como foi (ou será?) a vida de casado de Mr. Darcy e Elizabeth Bennet. Dá pra imaginar o quanto esse casal não deve ter tido luminosas divergências durante uma existência inteira lado a lado? O quanto esses dois não se calaram, ou ergueram a voz, nas discordâncias mais banais ou mais vitais que tiveram em seu (esperamos!) longevo casamento? E para criar um filho, então?

Felizmente eu não preciso me deter somente a esta incrível história de amor para ficar constantemente de queixo caído com a habilidade da senhorita Austen ao escrever um esplêndido compêndio humano como este. Se você notar, o narrador de Orgulho e Preconceito quase não tem compromisso com descrições que não sejam humanas. Bosques, quartos, salões de dança, cidades que se veem pela janela da carruagem, comida à mesa: essas coisas raramente são pinceladas. Às vezes Austen nem cita onde os personagens estão conversando. É como se o único tesouro que houvesse na Terra fosse mesmo o ser humano – o outro, em especial, não o próprio umbigo. A ficção em Jane Austen não me parece um escape autobiográfico, embora o leitor possa supor que (pela necessidade de avaliar o caráter de todos que estão a seu redor) Austen surja nas páginas através de Elizabeth Bennet. E mesmo que eu não tenha lido uma biografia de Jane Austen, ao entrar em contato com a estrutura de Orgulho e Preconceito e seus momentos mais luminosos, fica claro que a autora devia ter duas anteninhas hipersensíveis a qualquer tipo de ocasião social, perscrutando olhares, omissões, rubores, grandiosidades e palermices correndo por cima e por baixo de todas essas camadas. Mas Jane Austen estava tão além de usar literatura como um mero espelho para se mostrar ao mundo, que eu adoro o fato dela ter escolhido a irmã bonita e cândida para dar seu próprio nome: Jane. A personagem é tão diferente da autora que a gente nem chega a lembrar que ambas tem o mesmo nome, não é mesmo? Com essa ação, é como se Austen fincasse a bandeira dizendo: vejam, não estou aqui para registrar minha vida, e sim a vida; juntar os seres, ver no que eles se transformam quando algo ou alguém lhes toca por este ou por outro lado, o que se transmuta em (ou entre) amizade e inimizade.

Um amigo certa vez me falou que, antigamente, se descrevia muito os lugares e coisas porque não havia google ou televisão. Nessa perspectiva, esse é mais um dos motivos para entendermos como Jane Austen é uma escritora tão atual. Enquanto discorre sobre a situação dos personagens ou sobre certa perspectiva da história, pulamos de um ambiente para o outro sem qualquer anúncio: definitivamente uma prosa ágil que espera de seu leitor o mínimo de perspicácia. Nessa busca por um livro ágil (mesmo que com quase 400 páginas) Austen raramente chega a usar seus personagens para descrever os locais onde se passam as cenas, ou até mesmo um vestido – notável isso, se você pensar que se trata de uma autora, não autor. E como não amar o senhor Bennet? Ele é irônico, amoroso, criativamente gentil ao lidar de forma diária com uma esposa tão incompatível (e a gente sente a dureza desse processo no começo do capítulo 42). Tão honrado ao não obrigar Lizzy a se casar com Mr. Collins sob toda aquela argumentação desesperada da mãe.

Mr. Bennet e as filhas, Elizabeth e Jane, ilustração de Joan Hassal

E essa capacidade da Jane em criar finais felizes incrivelmente verossímeis? Em um momento eu estava sendo levado junto pelas preocupações da Lizzy ao imaginar o tipo de reação que a senhora Bennet teria ao descobrir que sua segunda filha iria casar com aquele desagradável e orgulhoso senhor Darcy. E depois a gente dá gargalhadas ao ver a matriarca explodindo de alegria e revendo todos os seus conceitos em menos de 5 segundos, passando a adorar o rapaz.

O discurso implícito nos diálogos da Austen é que são impressionantes. Na forma como os diálogos se tornam um suporte para construir ou revelar um personagem, ao invés de uma aproximação explícita ao âmago de cada um por parte do narrador. Através desses diálogos ela estabelece uma cumplicidade com o leitor, porque embora de personagem para personagem a cortina do intelecto ou do coração permaneça fechada, naquele mesmo ambiente, naquele mesmo minuto, o leitor fica sabendo de quase tudo. Eu gosto dessa sensação de quase tudo que a Austen nos passa: sempre há alguma coisa que talvez ainda deseje se revelar, que pulsa, mas que pode ficar em silêncio pelo presente momento – afinal, “seríamos na verdade muito pobres se fôssemos apenas o que imaginamos ser” (Marie-Louise Von Franz).

Outra coisa que adoro, especialmente na Jane Austen de Orgulho e Preconceito, é que temos ali um autor que não precisa matar ninguém para fazer com que o leitor anseie pelo próximo capítulo – como se estivesse lendo um livro de suspense! (eu havia prometido para mim mesmo que não usaria esse texto para fazer propaganda dos autores que gosto, mas sou obrigado a falar desse aqui ó –>). Mesmo em Howards End, o livro que (para mim) é a obra-prima do E. M. Forster, o livro mais austeniano que já li sem parecer cópia de Austen, o Forster precisa matar um ou dois personagens para a coisa andar – e como anda magnificamente. Ele tem também esse poder de tramar a vida baseando-se na mecânica de como os caracteres se tocam, como se cria uma poderosa engrenagem para uma história através dessas estruturas: o casamento, a herança, a moral. E a Inglaterra.

“Queres ser universal? Começa por pintar a tua vila”, disse o Tolstoi. E acho que Jane Austen nos ensina que pouquíssimo além disso é necessário para se tocar em todos os pontos, chegar em todas as partes.

NOTAS
¹ Livros: Afeganistão (2005), Cura (2007) e Contos de facas (2010) |  Entrevista |  Vídeo
² Imagens: xilogravuras de Joan Hassal, Pride and Prejudice, coleção Folio Society 1957.

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8 comentários

  1. Enzo,

    quando você fala em luminosas divergências é por aí que sempre pensie sobre o casal Darcy ao longo de suas vidas e quase posso imaginar Jane Austen escrevendo uma continuação de Orgulho e preconceito.

    “Mas Jane Austen estava tão além de usar literatura como um mero espelho para se mostrar ao mundo, que eu adoro o fato dela ter escolhido a irmã bonita e cândida para dar seu próprio nome: Jane. A personagem é tão diferente da autora que a gente nem chega a lembrar que ambas tem o mesmo nome, não é mesmo? Com essa ação, é como se Austen fincasse a bandeira dizendo: vejam, não estou aqui para registrar minha vida, e sim a vida;”

    Creio também que Jane, pelo único retrato que conhecemos dela, a aquarela feita por Cassandra, sabia que não era bonita e colocar o seu nome na mais bela das irmãs Bennet era pura diversão.

    Definitivamente não há como não amar o senhor Bennet. Enzo, você sabe que alguns estudiosos de Austen, consideram que o personagem mais parecido com Jane Austen é o senhor Bennet. Eu concordo.

    Howards End é um dos meus livros favoritos. Nem falarei a respeito aqui pois não teria fim este meu comentário. Mas marcarei para um possível quadro que estou pensando para a Gazeta de Meryton.

    Enzo, mais uma vez obrigada por sua participação no Jane Austen em Português.

    Raquel

    PS: que alento o pensamento de Marie-Louise Von Franz!

  2. Obrigado, Raquel, pelo convite!
    E obrigado, Gi Cano, pelo gostar! Reler Orgulho e Preconceito este ano foi uma experiência maravilhosa. Todo mundo merece isso!

  3. Ótimo texto,

    estou de acordo sobre o que foi dito sobre o nome “Jane” ter cabido a irmã bonita. Realmente não notamos esse detalhe…assim, de cara.

    Também fico imaginando como terá sido a vida de Elizabeth casada com Mr. Darcy e também de Jane e Mr. Bingley…e também das outras irmãs Bennet. Será que a Mary ficou solteirona? Morando com os pais até que eles morressem e depois se mudando para a casa de uma das irmãs? É certo que a Kitty tenha feito um bom casamento como suas irmãs mais velhas por ter passado grande parte do tempo aos cuidados delas.

    E o pobre do Mr. Darcy teve que passar o resto da vida ligado ao Mr. Wickham e este provavelmente vivia em apuros financeiros com a desmiolada Lydia (que devia sofre horrores no casamento) e o Mr. Darcy tinha que ir em seu socorro a pedido da sua amada Lizzy.

    1. Dayana,

      assim como você imagino o peso de ter Wickham e Lydia na família. Sempre parasitas.

    2. É verdade, Dayana… eu nem tinha cogitado isso de uma forma consciente: ter Wickham e Lydia atados à existência deles devido a parentesco… é um problemão!

  4. Acho que todo mundo já se demorou um pouco imaginando o que seria a continuação que Jane não nos conta sobre Lizzie e Darcy ou qualquer outro dos casais (até Sr. Collins!). O que terá acontecido com Mary? E a filha da Lady Catherine de Bourgh, com quem teria casado? O que restou da casa dos Bennet? Quantos filhos cada senhorita teve? Elas realmente entenderam enfim o trabalho e preocupação que dava nos nervos da Sra. Bennet, de casá-las todas?
    Tive mta curiosidade nesse quesito quando saiu a notícia da série Death in Pemberley, baseado no livro; no entanto, não sei, o primeiro episódio não me pegou e até então não sei quem foi o assassino ou seu motivo (embora possa imaginar bem pela reputação do sujeito). Às vezes penso que seja apenas por não ser mto fã de romances policiais, mas eu ainda tinha mta esperança pq costumei gostar mto de séries investigativas (uma das últimas foi Castle).
    Acho que é realmente como a narração nos leva a pensar ou nos deixamos envolver por ela, até pq é natural tomar o narrador como guia e pq, pela época do romantismo e realismo, era comum limitar os temas sociais pela famílias mais burguesas. Mas nem por isso tbm ache que isso faz do livro um pouco pobre de espírito, Austen demonstra mta garra em saber utilizar os elementos nos devidos tempos – e olha que li faz um tempinho. Lembro, no entanto, que foi uma das coisas que mto me impressionou. As tiradas, as sacadas, as convenções, conveniências, as ideologias… ali é um prato cheio. Como diz no texto, “naquele mesmo ambiente, naquele mesmo minuto, o leitor fica sabendo de quase tudo. Eu gosto dessa sensação de quase tudo que a Austen nos passa: sempre há alguma coisa que talvez ainda deseje se revelar, que pulsa, mas que pode ficar em silêncio pelo presente momento”.
    Não tinha pensado antes por esse lado que o txt leva (em duzentos anos é um pouco difícil captar tudo, não?), e já disseram tantas coisas que não seria difícil encontrar repetições por aí, e embora tenha muitas, não canso de sempre ouvir mais pouco sobre. OeP me marcou mto e por sempre me traz alguma lembrança nas mais diversas situações de vida. Estou, na vdd, há mto tempo tentando me desligar um pouco e até então não consegui – sinal de que não devia mais tentar? rs – só sei que em breve pretendo reler e se “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, diria Italo Calvino, decerto sairei mais rica do que poderia imaginar de uma releitura – ainda mais após a leitura de As Sombras de Longbourn. Sou dessas que acredita que a releitura tira aquelas dúvidas que ficaram, senão reforça aquelas crenças que fomos colhendo após a primeira verdade/leitura. Ouvi de uma amiga recentemente que na releitura dela ela percebeu muita coisa que na primeira não engatou bem, como pensar no destino de Mary (com Mr. Collins). Acho que já tenho então uma boa bagagem para voltar a essas terras 🙂 Mas sempre disposta a ouvir um pouco mais…

    Talvez seja um pouco difícil comentar sobre OeP sem deixar um texto grande? rs

    (fui direcionada a esse texto por um coment em: http://www.dear-book.net/2014/04/resenha-as-sombras-de-longbourn-jo-baker.html).

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