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 “As prioridades de Charlotte Lucas”
por Bárbara Olivier Garcia

Jane Austen não criava personagens ao acaso, todos tem uma missão em seus livros e procuram mostrar um lado da realidade em que ela vivia. Charlotte Lucas, a melhor amiga da Elizabeth, é mais uma dessas personalidades que aparecem na obra para mostrar um ponto de vista além daquele tão martelado pela protagonista.

Charlotte Lucas, Orgulho e preconceito 2005

Claudie Blakley como Charlotte Lucas, Orgulho e preconceito, 2005

Charlotte é, muitas vezes, julgada como a azarada em Orgulho e Preconceito: resolveu casar com o Sr. Collins achando que teria um futuro promissor, mas acabou perdendo a oportunidade de encontrar o amor verdadeiro com o seu próprio Sr. Darcy, assim como escolheu Elizabeth. Em defesa da Sra. Collins, não foi bem isso o que aconteceu, tudo ali foi premeditado por essa moça “ajuizada e inteligente de aproximadamente vinte e sete anos”.

E quem mais, além de Charlotte, sabia o que era ser uma mulher a beira dos 30 anos, solteira, com uma grande família e um pedido de casamento? Jane Austen é claro, pois essa era a situação dela quando recebeu aquela conhecida proposta de matrimônio que ela aceitou e no dia seguinte negou. Jane provavelmente não viveu a experiência de encontrar um Darcy ou um Bingley que cai na esquina de casa, mas ela esteve no papel de Charlotte e em um impulso aceitou o destino comum a ela e outras garotas da época. A diferença é que Jane mudou de ideia em prol de outros amores (a escrita, por exemplo), enquanto sua personagem aceitou a situação que tinha planejado e gerenciou o casamento para obter melhorias a ela e a família.

Para começo de conversa, cabe lembrar que o casamento no final do século XVIII era um negócio. Charlotte cresceu com a visão de que o casamento seria sua forma de lucro e a maneira como beneficiaria a família, uma função mais empresarial e financeira do que romântica para o matrimônio. Até mesmo a Sra. Bennet – a parte o seu orgulho ferido por não ser a primeira a ver suas filhas casadas – confessa que os Lucas “são gente muito esperta” e que “só pensam nas vantagens que podem obter” (cap.25, p.148) e, por isso, não seria de outra maneira no casamento dos filhos.

Já Lizzie cresceu em um ambiente que, no geral, ia contra estes valores da época: ao anunciar a família que não tinha aceitado a proposta do Sr. Collins, ela recebe a rejeição da mãe e o apoio do pai por essa decisão tão sensata. E imagino que se Lydia ou Kitty recebessem o mesmo pedido, ambas recusariam pela falta de um uniforme no pretendente. A família Bennet, seja por estar desestruturada ou por acreditar em valores maiores que o dinheiro, aceitou a opinião de Lizzie. Enquanto a família Lucas sabia muito bem do que precisava, passou isso para os filhos e chegaram ao casamento tão esperado.

Apesar de toda insatisfação por parte da Lizzie e dos leitores, Jane Austen procura defender a sua personagem e suas escolhas. No capítulo 22, logo após a notícia do noivado, a escritora foca a família Lucas e as recompensas com o casamento, bem como a serenidade e análise minuciosa feita por Charlotte antes de tomar a decisão:

“Toda família, em suma, se sentia profundamente feliz. As filhas mais novas alimentaram a esperança de ser apresentadas à sociedade um ou dois anos mais cedo do que esperavam; e os rapazes afastaram a apreensão de que Charlotte morresse solteira. A própria Charlotte estava razoavelmente serena. Conseguira o que almejava e tinha tempo para pensar no assunto. Suas reflexões foram, em geral, satisfatórias. (…) Sem ter grandes ilusões a respeito dos homens ou da vida conjugal, o casamento sempre fora o seu objetivo; era a única segurança para uma moça bem-sucedida e de pouca fortuna;” (p.132)

De fato, a maior preocupação de Charlotte era contar a novidade para Elizabeth. A amiga fica desapontada, pensando em todas as oportunidades que a colega de bailes perdeu e quase se nega a visitar a casinha do casal Collins em Hunsford. Charlotte, no entanto, continua investindo na amizade, enviando cartas e recebendo muito bem a amiga que ao final dá o braço a torcer e percebe que a Sra. Collins está “muito bem, obrigada”: “Minha amiga é bastante inteligente, embora eu não saiba ao certo se considero seu casamento com o Sr. Collins a coisa mais sábia que já fez. Ela parece perfeitamente feliz, entretanto, e, vendo pelo ângulo mais prudente, de fato ela fez um bom casamento.” (cap. 32, p. 186)

Mrs. Collins, em Hunsford Park com Elizabeth Bennet

A visita aos Collins, aliás, além de ser um ambiente aonde acontecem eventos extremamente importantes à narrativa, também serve como uma justificativa feita por Jane Austen aos leitores. É como se ela dissesse: “Viu, as coisas não terminaram tão ruins assim…” Charlotte não foi imatura e impulsiva ao escolher seu pretendente, como aconteceu com Lydia. Assim como não foi tão romântica e paciente como Elizabeth para esperar a chegada do amor da sua vida.  Jane Austen mostra duas moças muito certas de suas escolhas e salienta: as personagens pensaram e analisaram a situação antes de tomar atitudes. Uma não foi melhor que a outra, elas simplesmente se apoiaram naquilo que era mais importante para as suas vidas e valores, seja o amor ou a estabilidade financeira.

NOTA

Edição usada neste artigo: Orgulho e preconceito,  BestBolso, 2012. 4ª ed. Trad. Lúcio Cardoso

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34 comentários

  1. Adorei as colocações. Mas proponho o seguinte pensar: acho que a Charlotte, de todas, é a mais sensata. Nenhuma personagem ali poderia se dar ao luxo de pensar no amor. Inclusive Lizzie e suas irmãs. A recusa de Lizzie poderia causar a perda da casa onde eles moravam, caso nenhuma irmã conseguisse um bom matrimônio.

    Sou ainda da seguinte opinião, se o Collins tivesse feito seu pedido a Jane, ela aceitaria. Ela tem uma noção de dever muito maior do que de suas irmãs.

    Lizzie correu um risco e foi recompensada, mas o final poderia ter sido bem diferente.

    1. Mell,

      meu sangue gelou quando percebi a possibilidade da pobre Jane ter aceito Mr. Collins. Mas é fato.

    2. Concordo totalmente Mell! Também acho que Jane seria sensata e casaria com o Mr. Collins, mas ainda penso que ela ficaria um tanto desapontada com esse final (o que não faria a mínima diferença no contexto da época), enquanto Charlotte parece perfeitamente “ok” com esse casamento.

  2. Gostei do post, e entendo que a Charlotte foi feliz com a escolha dela, pq ela nunca foi uma romântica,como ela própria disse no livro,rs.
    Afinal,ela queria apenas uma estabilidade financeira.

    Mas eu não consigo parar de imaginar,num futuro, a Charlotte mais velha,e repensando sua escolha, pois ela é uma moça inteligente, não consigo ver ela como alguém futil que só vai pretar atenção nas coisas materiais que o sr.Collins forneceu a ela. Uma hora ela vai prestar
    mais atenção nos defeitos do sr.Collins e talvez não tenha bons pensamentos sobre sua escolha.

    1. Fernanda,

      não creio que ela tivesse problemas quando mais velha, pois ela desde o início do casamento já havia arrumado um jeito de manter o marido o mais afastado possível!

      1. Sim Raquel,eu sei,mas mesmo assim, uma hora o sr.Collins iria preferir ficar em casa kkk.E chega a ser estranho você ficar afastada de um homem que será o pai dos seus filhos!Enfim,desejo
        o melhor para a charlotte 🙂 .

      2. Fernanda,

        sempre terá essa possibilidade… Acho que Charlotte capricharia no chá de camomila para ele ficar dormitando na cadeira de balanço!

      3. Verdade! Acho que o problema é que às vezes temos a tendência de enxergar o Mr. Collins como vilão, o que ele não foi! Ele era, no máximo, irritante e isso quando estava com outras pessoas, como uma forma de manter ou criar um certo “status”, mostrando como era uma pessoa influente. Talvez em casa Charlotte o controlasse melhor utilizando desses artifícios que a Raquel colocou.

        Ah, que bom que você gostou do texto Fernanda!

  3. Engraçado, nunca senti nenhum tipo de decepção ou insatisfação pela escolha de Charlotte ao ler O&P, pelo contrário: achei que o casamento com o sr. Collins combinou perfeitamente com sua personalidade racional e prática.

    1. Concordo plenamente com você. As personalidades bateram, e a Charlotte parece ter tirado de letra a convivência com seu querido esposo (por exemplo, o fato dela “incentivar” Mr. Collins a trabalhar no jardim o máximo de tempo possível, reservando uma salinha somente para si mesma, hehe).

      1. Pat,

        adoro esses detalhes no relacionamente dos Collins e fico imaginando onde Jane terá visto esse comportamento!

    2. Elaine,

      e mr. Collins nem se dá conta que agora tem duas mulheres para manobrá-lo: Charlotte e Lady Catharine!

    3. Oi Elaine, também não fiquei decepcionada com o casamento, até porque era o que Charlotte vinha planejando e parecia querer. Na verdade, essa visão de “azarada” só me surgiu depois que comecei a ler os comentários de outras leitoras e ao assistir as adaptações que acabam colocando a Elizabeth como aquela que está certa na questão e a Charlotte parecendo até meio rude quando responde à amiga que não esperava muito do amor.

  4. Gostei muito do texto da Bárbara, tb penso dessa forma, que Charlote foi sim feliz, mas a sua maneira.
    Ela não tem o espírito livre e a frente de seu tempo de Lizzie, e é o que tenta explicar nessa cena da foto.
    Nunca tinha parado para pensar na colocação da Bárbara mas faz muito sentido e acredito que tenha sido sim a intenção de Jane.
    Bjs

    1. Gi,

      às vezes penso que talvez Charlotte fosse a mais livre de todas, nada de ficar a mercê de um amor… só pensamentos esparsos…

  5. As pessoas sempre têm a ilusão de que casamento feliz só acontece quando tem raízes no amor romântico, aquele que faz suspirar, que faz sonhar, quase arrebatador. Mas essa é apenas uma forma de amar e que, muitas vezes, faz sofrer(e como!). Quem mais sofreu em Orgulho e Preconceito? As mais românticas. Um romântico é um sofredor!(infelizmente sou uma).
    Existe o amor puro, simples, sem arrebatamento, nem maiores pretensões. Esse tipo de amor também garante a felicidade, mas sem tantos sofrimentos.

    1. Matria Celina,

      tem também esse aspecto do amor romântico, mas creio que no caso de Charlotte não existia nenhum tipo de amor e sim uma determinação de casar e um bom plano para gerenciar esse casamento!

  6. Perfeito! É exatamente assim que eu enxergo a Charlotte. Ela teve maturidade pra analisar a própria situação e fez acontecer seu “final feliz”. Charlotte Lucas claramente é uma mulher “pé no chão”, além de ser bastante observadora (acredito que ela foi a 1ª a perceber os sentimentos de Mr. Darcy pela Elizabeth). Imagino que se ela vivesse hoje em dia seria uma mulher bem sucedida e feliz, independente de estar ou não em um relacionamento.
    O problema é que a gente tende a se apaixonar e torcer pelos casais principais, e às vezes não se dá o devido valor às outras personagens do livro (P&P mesmo é uma obra recheada de personagens “secundários” interessantíssimos, sendo Mr. Bennet, Charlotte e Mr. Collins meus favoritos.).
    Ps: meio fora do escopo do post, mas tenho que desabafar: como me irritam as comparações de qualquer personagem de Jane Austen com a Elizabeth, como se todas as mulheres tivessem que agir feito ela (por exemplo, as pessoas tendem a detestar Fanny Price e Anne Elliot com a desculpa delas serem tão diferentes da Elizabeth). Mas poxa, o talento da Jane era muito maior que fazer um “exército” de Elizabeths, o fato das protagonistas serem tão diferentes é uma das coisas que eu mais amo em seus livros.

    1. Eu amoooo Persuasão e o fato de Jane Austen ter criado uma personagem que, ao contrário da Lizzie, se deixa influenciar por opiniões alheias e toma uma decisão “errada”. Para mim é a personagem mais humana de todas, pq por insegurança/inexperiência ou o q for ela fez uma escolha do qual se arrepende e qdo surge a oportunidade busca fazer diferente, indo contra tudo e todos. Eu adoro Anne Elliot, arrisco dizer que é a personagem com o qual mais me identifico, apesar de admirar muito a Lizzie (queria ter sido mais como ela, rs).

      1. Eu também amo Persuasão, arrisco dizer que é meu favorito (embora seja difícil escolher um só!), e concordo totalmente com vc, é muito bom ver uma personagem tão real, alguém que deixou a felicidade escapar pela influência de outros, mesmo que alguns bem intencionados, e a redenção do casal é uma coisa linda! (Por isso detesto quando vejo alguém dizendo que ela é sem graça).
        ps: a personagem com quem mais me identifico é a Elinor, quando li S&S fiquei chocada com o quanto minha personalidade é parecida com a dela, haha.

      2. Gi,

        eu também gosto demais de Persuasão e de Anne, ao mesmo tempo concordo com Jane Austen que considerava a personagem ‘almost too good’ como heroína. Jane Escreveu isso numa carta para a sobrinha Fanny e neste ponto consigo ver uma pouquinho de Mary Crawford em Jane!

    2. Pat,

      Charlotte, nos dias de hoje, trabalharia muito, construiria uma carreira, ajudaria a família e só mais velha escolheria alguém. Talvez nem casasse mas viveria com alguém bacana e centrado.

      Concordo com você sobre um exército de Elizabeths. Desse modo ia acabar escrevendo uma série nos moldes dos romances Sabrina-bianca-Julia!

      PS: mas confesso que a Fanny e a Emma me dão nos nervos!

      1. Raquel,
        concordo muito com você sobre a nossa Charlotte nos dias de hoje.
        Ah, já eu gosto muito dessas duas (apesar de que a própria Jane esperava uma certa rejeição à Emma, hehe. Acho que o que me ajuda a gostar dela é a presença de alguém muito mais irritante no livro: a hilária Mrs. Elton). As duas personagens de Jane com as quais não tenho muito paciência são Catherine Morland e Marianne Dashwood, elas me irritam um bocado.

      2. Pat,

        quem me deixa mais doida do que Emma é Miss Bates. A criatura não cala a boca. Socorro!

        Mas Fanny Price me irrita mais do que todas, apesar de sentir pena dela quando criança e entender seu comportamento quando adulta.

      3. Sei que a melhor análise de uma personagem é tentar se colocar no lugar dela, no tempo dela, como este ótimo artigo fez. Mas, no caso da Charlotte, eu não consigo! É bloqueio mesmo!
        Porém, concordo com uma coisa: uma “Charlotte” daquele tempo é mais compreensível do que uma “Charlotte” do nosso tempo. Pois, naquele tempo, o casamento era a “melhor” saída para pessoas como a Charlotte. Hoje em dia, não há nenhuma cobrança para a mulher se casar e ela pode ter independência profissional e financeira. Por isso, uma Charlotte nos dias atuais, que pensasse no casamento como a amiga da Lizzy, seria tola, né? (O pior é que a gente ainda vê Charlottes assim por aí…)

      4. Rebeca,

        “O pior é que a gente ainda vê Charlottes assim por aí…” disse muito bem. E o pior que pura instabilidade afetiva pois muitas vezes tem independência financeira e se sujeitam a aturar um estrupício.

    3. Pat, obrigada pelos elogios! Eu adoro os personagens secundários nos livros da Jane Austen, conseguem ser tão bem construídos quanto os protagonistas e, na minha opinião, são eles que dão a cara da sociedade da época para a obra, retratando diversos aspectos que nem apareceriam se a história ficasse só no casal principal.

  7. Bom dos livros que li,tirando a Mariane Dashwood e a Catherine Morland, boa parte das heroinas da Austen são centradas e não românticas a ponto de fazer dele a sua única razão de viver rs. Elas podem até sofrer por ele, mas elas procuram continuar a seguir a vida.

    E como a Maria Celina disse,existe o amor puro e sem arrebatamento,que também é saudável,que acho muito bom ter sido mencionado aqui,afinal, Austen nos mostrou em “S&S” que o amor pode ser sentido de formas diferentes, por pessoas diferentes.

    Mas,segundo o “P&P”,Charlotte não sentia nenhum tipo de amor pelo Collins,rs,nem o com paixão ou o tranquilo, sua escolha foi movida pelo fator R$,mas espero que que ela seja feliz com essa escolha durante longos anos! 😀

    1. Só um adendo: o que eu acho muito interessante com relação à Charlotte, é a forma como ela se resignou e manteve a amizade com a Lizzy. A Lizzy tb teve uma postura interessante: estranhou a atitude da amiga, mas deixou a amizade falar mais alto. Nesse ponto, acho que foi um gesto bonito por parte das duas. E é o que, muitas vezes, a gente tem que fazer como amiga: a gente vê que a pessoa vai fazer uma besteira, dá nossa opinião, mas, se a pessoa quer ir em frente mesmo assim, a gente só tem que permanecer com a amizade.

  8. Gostaria muito de fazer um ensaio acadêmico sobre a Charlotte Lucas, andei pesquisando e encontrei este post, achei excelente. Também meu coração gelou quando pensei na possibilidade da Lizzy casar com o Mr.Colins. Tenho certeza que mesmo que, se a lizzy tivesse sido “sensata” ao casar com o senhor colins, acredito que haveria uma mudança de personalidade da personagem “Elizabeth Bennet”, e esse não seria o ideal para a Jane Austen. A jane tinha um foco sobre a Elizabeth Bennet. Não foi por acaso a escolha e o tipo de cônjuge que a Charlotte fez e aceitou.

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